sobre mudança
8 maio 2012

Voglio raccontare una piccola storia.

Quero contar uma historinha.

O art. 966 do CC define o empresário como o profissional que exerce com habitualidade e em nome próprio uma atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens e serviços.
Mas talvez poucos saibam que a razão desta exclusão é fruto de anos de debates acadêmicos entre juristas renomados, que levaram à unificação do direito privado (direito comercial e direito civil) em 1942 na Itália e mais tarde, em 2002, no Brasil.

Pois bem. Aí começa a história. Contam os doutrinadores de direito comercial que foi o jurista brasileiro Augusto Teixeira de Freitas em 1867 quem por primeiro teve a ideia de unificar o direito comercial com o direito civil, mas que não obteve sucesso. Vinte e um anos depois, do outro lado do oceano, o professor da Universidade de Roma, Cesare Vivante chegou à mesma conclusão: que não havia por que ter dois direitos separados. Vivante apresentou ao mundo acadêmico europeu suas ideias revolucionarias durante a Aula magna do Curso de Direito Comercial na Universidade de Bolonha, publicando seu entendimento, mais tarde, na Introdução do seu Trattato di Diritto Commerciale, 1ª ed.

Rubens Requião afirma que Vivante “ao proferir a conferência […] escandalizou o mundo jurídico da Europa […]” (para quem quiser se deliciar com a leitura da aula do mestre Vivante, aqui o link).

Obviamente, muitas foram as criticas por parte dos que defendiam a autonomia do direito comercial, entre eles a de outro renomado jurista italiano, Alfredo Rocco, que prontamente respondeu ao Vivante com uma serie de argumentos, contrabatendo a tese. Pois bem. Vivante replicou todas objeções do Rocco. Havia, porém, um único argumento que ele não conseguiu contrabater, a ponto de, alguns anos mais tarde, fazer algo que tão somente os mestres são capazes de fazer: reconhecer seu erro publicando uma retratação na 5ª edição do seu Trattato, dando razão ao Rocco. Nesta retratação, nos conta Requião, Vivante afirma ter chegado à conclusão que haveria sim a necessidade de autonomia do direito comercial devido à “índole que decorre do próprio comercio”. Os serviços prestados pelos intelectuais, intuitu personae, personalíssimos, não poderiam ser enquadrados como atos de comércio, assim como os negócios comerciais, “os negócios a distancia, entre ausentes, são problemas que o direito civil não resolve”. Este o motivo da exclusão dos intelectuais do rol dos empresários quando da unificação dos direitos.

Mas por que estou contando aqui esta passagem? Porque recebi ontem a notícia de que a monografia que defendi ano passado foi aceita e publicada pela Revista Jus Navigandi. Lá comento sobre as mudanças que ocorreram no mercado da tradução, em grande parte devidas ao avanço da tecnologia, falo sobre o profissionalismo e a organização da atividade, que engloba hoje em dia não somente a atividade propriamente intelectual de tradução, mas também uma atividade administrativa e de marketing, necessárias para estabelecer e desenvolver seu próprio negócio. “O direito civil já não resolve mais” as relações jurídicas que se criam, pois a atividade se tornou globalizada, os negócios são estipulados à distância, entre ausentes. Não há mais a presença do caráter personalíssimo na relação.

Para o legislador brasileiro os profissionais intelectuais autônomos continuam na impossibilidade de atuarem como “proto-empresários” e não há, por exemplo, como enquadrar a atividade de tradução no Simples ou no MEI. Podemos discordar, espernear, fazer o diabo a quatro, mas enquanto o legislador não mudar de opinião, como só os grandes mestres sabem fazer, só nos resta debater a questão.

Para quem quiser, a monografia está disponível aqui.

o mercado da tradução
14 dezembro 2011

Após mais de um ano desde o último post, uma pequena contribuição. Digamos que a considero meu presente de Natal. 

Trata-se do capítulo de um trabalho de pesquisa que retrata o ofício do tradutor e o mercado em que ele opera, sem a pretensão de esgotar um assunto tão vasto. 

buon ferragosto!
15 agosto 2010

Hoje, dia 15 de agosto, é feriado nacional na Itália. Ferragosto.

Muitas lembranças de vários ferragostos passados na praia, em volta de uma fogueira, com o grupo cantarolando ao som de um violão e curtindo o que restava das férias, naquela atmosfera mágica que só um luar nos proporciona.

A palavra Ferragosto vem do latim Feriae Augusti[1] e significa férias de agosto. Festa popular de origem pagã que comemorava o fim da época das colheitas e dos principais trabalhos na lavoura. 
O imperador Caio Otaviano[2], depois ter sido proclamado Augusto, ou seja, sagrado e venerável, determinou que o mês de agosto fosse festivo e dedicado às Feriae Augustali, celebrações em homenagem à fertilidade dos campos e à maternidade. 



A Igreja, mais tarde, começou a celebrar no mesmo dia a Assunzione della Santissima Vergine,  Assunção de Nossa Senhora, e a festa pagã começou a confundir-se com aquela cristã.

Naquele período, também, os camponeses cumprimentavam os seus patrões pelo fim da colheita e recebiam em troca uma gorjeta. Deste costume deriva a expressão do dialeto milanês “dà el feravost“, “dare il ferragosto“, gorjeta que os patrões, até o século XIX, davam aos seus trabalhadores em ocasião das férias.

A tradição que vê agosto como sendo o mês das férias permaneceu até hoje, e com ela continuam todas as celebrações e costumes, cristãos e pagãos, como as procissões e os carros de donativos expressando gratidão pelas boas colheitas, as sagras dos covoni, os fardos de feno, a água e o fogo purificadores, as cantorias e o antigo tamburo de pele de cabra dos tamburinari, que ainda hoje acompanham as procissões.


rullo di tamburi continua também marcando o início das corridas de cavalos e de asnos típicas destas festas de verão, como a do Palio dell’Assunta, segunda e última corrida do famoso Palio di Siena,do dia 16 de agosto.

Nos dias de hoje, Ferragosto continua sendo um dia tão importante para os italianos que tudo, ou quase tudo, permanece fechado: fábricas, lojas, mercados, farmácias, bares, padarias, supermercados, tudo Chiuso per ferie. Não importa em que dia da semana cai, as cidades ficam vazias, ardendo sob o sol. O feriado estende-se, na maioria das cidades, por mais de uma semana. 


Os italianos, depois terem passado pelo famoso êxodo de ferragosto, estão aproveitando os últimos dias no mar, na montanha ou nos lagos, à procura de um ar fresco ou de um banho refrescante[3]

Mas voltando às minhas lembranças, os festejos de ferragosto já começam na noite do dia 14, na praia, e o fogo, elemento purificador dos antigos romanos, reaparece nos falò, os luaus com os amigos, alguém tocando um violão, todos cantando, observando as estrelas cadentes, ou tomando um banho à meia noite no mar.

Às vezes rola uno spaghettino di mezzanotte na casa de alguém. 

Tradicionalmente o dia 15 é dedicado aos passeios fuori porta, para fazer uma scampagnata, com pranzo al sacco, ou seja,  um passeio  nas vizinhanças da cidade, à procura do ar fresquinho da montanha, com piquenique. O  importante é se divertir na companhia de amigos e parentes. 


Prato típico, em algumas regiões do sul, para Ferragosto, é a famosa Parmigiana di melanzaneAqui vai o link para a execução da receita e, aqui, para um menu típico de Ferragosto.

 
Eu fico por aqui com as minhas lembranças e torcendo para que todos os italianos voltem a trabalhar o quanto antes!

Buon Ferragosto!



Obrigada pela visita e não esqueçam de comentar.


Notas
[1]As celebrações de agosto, antigamente, eram denominadas de Consualia, em homenagem ao Deus Conso, protetor do grão enterrado. Depois foram rebatizadas de Augustali, em honra ao imperador Caio Otaviano Augusto.
[2]Caio Otaviano era sobrinho-neto de Júlio César, que o adotou e o fez seu herdeiro. Caio Otaviano assim se tornou, por adoção, Caio Júlio César Otaviano e posteriormente, César Augusto, o Augusto.

[3]Há dez anos alguns municípios promoveram iniciativas como a do Artigiani aperti ad agosto, que melhoraram um pouco a situação para quem passa as férias na cidade.

buon appetito
16 julho 2010

“Tutto il giorno di corsa,
a pranzo un panino…” [1]

Entre um tomate e outro sempre aproveito para beliscar alguma coisa ou tomar um cafezinho. Perto das 15 horas meu estômago começa a reclamar e lá vou eu preparar bolo, café e alguma coisa salgada para aplacar minha fome atávica. Quando tenho mais tempo, ou estou cansada, converso no skype ou no twitter com outras tradutoras.

Durante essas conversas me dei conta de que os tradutores, por vezes, estão tão concentrados no trabalho (com a “tia Dédi” chicotando), que se esquecem de se alimentar. E comentam: “São 3 horas da tarde e ainda não almocei.” 

Mas… peraí! Para mim o pranzo sempre foi lá pelas 14 horas. Não soa tão estranho assim almoçar tarde.

De qualquer modo, sempre achei interessantes as diversas terminologias das refeições e, tempos atrás, traduzindo um “mattinale” — resumo dos eventos mais importantes das últimas 24 horas — para uma “colazione di lavoro[2]“, observei que a terminologia italiana confunde um pouco os desavisados. Afinal, o que é colazione, colazione al sacco, colazione d’affari, colazione di lavoro, pranzo, merenda, e cena?

Vamos fazer um passeio pela Roma antiga.

Os romanos costumavam dividir o dia em duas partes, o dia (das 6h às 18h) e a noite (das 18h às 6h do dia seguinte), tendo assim cada parte 12 horas. Durante o dia eles consumiam três refeições. A primeira, chamada de jentaculum, desjejum, era uma refeição frugal e incluía um copo de água, pão com sal, azeitonas, uva passa, por vezes queijo e algumas frutas. Não tinha hora fixa, era depois do despertar, ou seja, entre às 6 horas e às 9 horas, dependendo dos hábitos de cada família e, portanto, da condição social.

A segunda refeição era o prandium, consumida na sexta hora do dia, ou seja, lá por volta de meio-dia, e servia para recarregar as energias. Muitas vezes eram sobras do dia anterior, pouco mais que um lanche com carnes frias, alguns queijos, fruta e vinho, consumidos em pé.

A terceira e mais importante refeição era a cena, que começava por volta da nona hora do dia, no inverno — isto é, por volta das 15 horas – e, no verão, depois da décima hora do dia — 16 horas — em alguns casos prolongando-se noite adentro.

Durante a cena, deitados em triclinia (do grego Klinai, espécie de divã para três pessoas), os romanos conversavam com os convidados, atualizando-se sobre as questões políticas e econômicas, entretidos por malabaristas, músicos e bailarinas.

Quando o império romano começou a declinar, o prandium tornou-se a refeição principal para a maior parte da população. E assim permaneceu quando começou a ser usada a língua italiana.


A palavra colazione começou a ser usada para indicar uma breve refeição matinal; o pranzo, a refeição principal do dia; e a cena a refeição da noite. Também são usadas as expressões dopo pranzo   –  depois do almoço  –  para indicar o período da tarde e dopo cena para indicar as horas da noite. 

Mas, se formos analisar os usos regionais, as coisas são mais confusas do que parecem. Ainda hoje, em parte da Itália, denomina-se a primeira refeição do dia de prima colazione, enquanto colazione ou seconda colazione indica a refeição de meio-dia — o almoço — e o pranzo indica o jantar. 


Muitos italianos  na colazione consomem somente um caffè ou um cappuccino com uma brioche calda,  chamada também de cornetto, no bar da esquina, lendo o jornal e conversando com os amigos, antes de começar o expediente.


Nas metrópoles e nas áreas industriais, o pranzo já perdeu o significado de refeição principal, pois a maioria consome um panino no próprio local de trabalho, eventualmente em pé, como os antigos romanos, ou uma refeição rápida numa tavola calda
A família reúne-se mais à noite, tornando a cena a refeição principal do dia, que assume então o significado de pranzo.

Para quem frequenta a alta sociedade, colazione é o almoço de meio-dia, pranzo é o jantar e cena é a refeição com os amigos à noite, depois do teatro ou do concerto, dopo teatro ou dopo concerto.

  
De qualquer forma, posso dizer que os italianos são conservadores e gostam de preservar alguns hábitos.

Entre as tradições mais arraigadas encontra-se a clássica tazzina di caffè, que encerra o pranzo (como mostra aqui Sofia Loren), a tão apreciada pennichella [3], ou pisolino (“quella mezz’ora di dormita che si faceva nonno”, como cantava Nino Manfredi), e o famoso pranzo della domenica[4], considerada a refeição semanal mais importante para as famílias italianas, principalmente no sul, onde quase virou uma instituição.

Outra tradição, que muda de nome (e receita), dependendo da região, é o aperitivo. No Veneto, toma-se o centenário spritz, ou sprissetto, acompanhado por noccioline, patatine, olive, gelo e limão e os  clássicos cicchetti; em Torino, a Merenda Sinora[5] ou um vermouth; no resto da Itália, um aperitivo, acompanhado de noccioline e olivette, sempre por volta das 19 horas, ou depois do expediente, momento em que o pessoal se reúne com os amigos em algum bar e aproveita para comentar os fatos do dia.

Por esse motivo, se um italiano convidá-lo para uma colazione, confirme antes se é a prima colazione ou a seconda colazione. Assim como, se for combinar um jantar (pranzo ou cena) com alguém, não se esqueça de ser bem específico quanto aos horários, para não correr o risco de ficar sozinho. 

Para encerrar, a cena clássica do filme “Sabato, domenica e lunedì”, de Lina Wertumuller, uma das mais belas peças teatrais do grande Eduardo De Filippo, que magistralmente mostra o ritual do pranzo domenicale e do clássico ragù, razão de viver da dona Rosa, que começa com os preparativos já no sábado.  Dá até para sentir o cheiro e ficar com água na boca. 


[1]Ritornello famoso de uma merendina italiana.
[2]colazione di lavoro é um pranzo completo com direito à entradas, primo secondo piattoliquore e caffè
[3]Siesta depois do almoço
[4]Il pranzo della domenica degli italiani 
[5]Não confundir com a merenda, hora do lanchinho da tarde e nome dado ao próprio lanche
Mattinale
Tipica colazione di lavoro
Pranzo
Pausa pranzo
Colazione
Alimentazione nell’antica Roma
Piccolo glossário della Scuola Alberghiera del Friuli Venezia Giulia

la gente são os outros
21 junho 2010

Ciascun vocabolo ha nell’intero linguaggio la ragione sufficiente di sé. 
Nè il trasmutarsi delle lingue può mai traviare tutte quante le voci dall’origine loro. 
E queste variazioni di suono e di senso son cosa importante a conoscere, perché ciascuna variazione di senso oltre a denotare le mutate idee, genera tra i vocaboli sinonimie nuove; e quand’anco uno degli affini cada in disuso, gli altri ritengono dell’antica analogia qualche traccia, quasi sempre rimane alla voce un pò di colore de’ significati per cui venne passando. [Roubaud1]

Há alguns dias estava eu com a minha xicara de café nas mãos, aproveitando aqueles 5 minutos da já famosa técnica do pomodoro (para quem ainda não conhece, aqui vai o link), quando um tweet me avisou que acabara de ser lançado o primeiro podcast brasileiro sobre tradução profissional. É o TradCast, uma parceria da Cláudia Belhassof com a Érika Lessa e o Marcelo Neves. Na hora não deu tempo para ouvir a gravação, pois os minutos já estavam acabando.

Conheci pessoalmente a Cláudia, a Érika e o Marcelo no último congresso da Abrates, e devo confessar que, além de serem competentes, são muito simpáticos (os podcasts não me deixam mentir, podem conferir clicando aqui), então logo guardei o link entre os meus favoritos para poder aproveitar outra hora com calma.

Ontem, finalmente, tirei a tarde para pôr em dia minhas leituras de blogs e afins, e lá estava o TradCast esperando para ser lido, ou melhor, ouvido. Adorei as dicas e como fazia tempo que não postava no meu blog, já aproveitei para seguir um dos conselhos que eles dão: “Exista na Internet“.

Então cá estou eu.

A inspiração para este post surgiu com a palavra “gente” que tão simpaticamente eles usaram no primeiro podcast. Não é minha intenção discutir sobre a questão gramatical do uso de gente no Brasil no lugar de nós, mas sim traçar um paralelo com o uso que se faz na Itália, fazendo algumas considerações sobre o registro do termo ao longo dos tempos.

Quando um italiano fala gente na Itália, não está falando dos italianos, tanto menos está indicando um noi ou um outro grupo determinado que tenha algumas características em comum, como, por exemplo, algum interesse. Quando o italiano fala gente refere-se às pessoas em geral, a uma coletividade indistinta, e é um termo ao qual, na maioria das vezes, dá-se uma conotação negativa, depreciativa. São os outros, a multidão. Por este motivo muitas pessoas, em geral, não usam o termo gente, preferindo persone.

Seguem abaixo alguns apontamentos históricos interessantes para entendermos a evolução no uso desta palavra.

Gente vem de gens, palavra latina que, na antiga Roma, indicava os grupos ligados pelo nome ou pela descendência. Ao lado da família, existia o agrupamento de gens, cujos membros, segundo Cícero, possuíam o mesmo nomen gentilicium, e eram descendentes de algum antepassado comum e longínquo. As gens foram se estabelecendo em territórios distintos e determinados, formando unidades políticas e econômicas. Tínhamos a gens Claudia, a gens Cornelia, a gens Curtia, a gens Valeria, a gens Giulia e por aí vai2.

Em italiano o conceito de gente, com o tempo, foi-se confundindo com o conceito de popolo. O termo genti, assim no plural, designava aqueles agrupamentos de pessoas que tinham características em comum, como costumes, religião, rituais, designando, em geral, a etnia. Falava-se portanto, de genti austriachegenti sardegenti francesi, no plural. 

Quando os territórios adquiriram características únicas e distintivas, nasceram os Estados (e mais tarde, as nações). Começou então a preponderar o uso de expressões il popolo italiano, e posteriormente, la nazione italiana, e não mais le genti d’Italia.

Gente também designava os soldados, escrevendo-se la gente, sem outro determinante, mas com o artigo determinado ou com a especificação genti d’armi. E com a expressão diritto delle genti designava-se o Direito das Gentes, hoje denominado de Direito Internacional Público.

Ainda o termo gente com os pronomes possessivos designava os parentes: la gente mia ou la gente dei miei paesi.

Aquela acepção de grupo, de coletividade residente em um determinado território foi perdida ao longo do tempo. La gente di Roma ou la gente di Napoli já são coisas do passado, tão limitado que é o uso atual. Dificilmente alguém fala hoje la gente di Cosenza è simpatica.

O uso do plural genti, designando as grandes coletividades, como por exemplo, le genti celtichele genti indoeuropee, le genti orientali ou le genti di Francia, com acepção de povo ou etnia, é usado hoje somente em conversas mais formais. É mais corriqueiro ouvir il popolo celta, i popoli indoeuropei, i popoli orientali.

Uma última análise. Como já escrevi, atualmente, em italiano, gente é usado para designar le persone in generale, uma multidão não específica. É um nome coletivo, indeterminado. Designa um número indeterminado de pessoas. Por este motivo, usa-se sem o artigo definido, assim:

A teatro c’era molta gente
C’è gente per strada
C’era poca gente alla festa
La stanza era piena di gente
Aspetta! C’è gente che è arrivata prima.

Ou como canta Sergio Endrigo: C’è gente che ama mille cose

Quando for usado no singular, com o artigo determinado, mas sem nenhum outro elemento que caracterize o grupo, entende-se como os outros, muitas vezes com tom depreciativo, um certo caráter de desprezo, designando o povo, visto como uma coletividade sem individualização. Como por exemplo nas frases abaixo:

Attento, la gente parla.
Cammino in mezzo alla gente.

Para determinar o grupo precisamos acrescentar algo que não seja apenas o artigo determinado, alguma qualificação que o defina, algo comola gente che corre, la gente che assiste a una partita di pallonePrecisamos colocar um determinante:

Gente ricca, gente povera; 
Gente di campagna, gente di città;
Gente di cinema, gente di teatro
Non sopporto quella gente.

Em quanto no Brasil “a gente somos nós“, na Itália la gentesão os outros.

Bom, muito obrigada por visitar a página e não se esqueçam de comentar!

A gente se vê por aqui (não resisti)

😉

P.S. Eu sei que o post ficou muito comprido e agradeço a quem teve a paciência de chegar até o final.

1 Roubaud, in “La definizione lessicografica. Tradizione e procedure compositive nei dizionari monolingui, alfabetici, italiani dalla seconda metà dell’Ottocento ad oggi. Dott. Eleonora Stenta 
1b  Curiosidade: é importante ressaltar que a conjunção “né” originalmente era pronunciada aberta  (/ nɛ/), isso até mais ou menos 1700, pois deriva de “nĕc”.  Por este motivo, em textos antigos aparece escrito com o acento grave, para indicar a pronúncia exata da época.  http://www.dizionario.rai.it/poplemma.aspx?lid=34563&r=13630
2 Curiosidade: as pessoas livres da antiga Roma adotavam o sistema dito tria nomina para os nomes. Por exemplo, o nome completo, em latim, de Júlio Cesar era Gaius Iulius Caesar. O primeiro, Gaius, era o praenomen, que caracterizava cada individuo (o atual nome de batismo), o segundo designava o nomen gentilicium, e esclarecia que ele pertencia à gensIulia, e o terceiro era o cognomenCaesar, correspondente ao nome do ramo da família (o atual sobrenome).

a mais antiga e a mais moderna
14 maio 2010

Per che, ora parendogli da dormire, comandò, 
che con la buona notte ciascuno alla sua camera si tornasse. 
Giovanni Boccaccio – Decameron II

Buona notte é a mais antiga saudação italiana. Encontramos o primeiro registro dela por volta de 1300, no famoso Decameron de Giovanni Boccaccio.

Buona notte é a saudação usada para despedir-se tarde da noite, especialmente antes de ir dormir, podendo ser usada com uma pessoa ou mais, em situações mais íntimas (quando usamos o tu)  ou em situações mais formais (quando usamos o Lei).

Usa-se também com tom de brincadeira, para indicar a impossibilidade de sanar uma situação, com sentido de “Agora já era!” “O que está feito, está feito.”, “Vamos esquecer!”.

Enquanto Buona notte é a mais antiga saudação em italiano, Ciao, uma das palavras italianas mais conhecidas e difundidas no mundo, é a mais moderna. Começou a ser utilizada por volta de 1800, enquanto o seu uso somente popularizou-se nos útlimos decênios.

Ciao é uma fórmula de saudação informal e na Itália é utilizada a qualquer momento do dia, seja quando encontramos uma pessoa que quando nos despedimos dela, mas vale ressaltar que se utiliza somente com pessoas mais próximas, quando utilizamos o pronome tu. Atenção portanto: quando se fala pela primeira vez com alguém, a não ser que a pessoa seja familiar, não digam Ciao. Quando for conhecer alguém diga  Buon giorno ou Buona sera, e quando for cumprimentar porque está indo embora diga Arrivederci ou o mais formal Arrivederla.

Apesar do Ciao atual ser uma saudação informal, intimista, na origem era uma expressão de grande respeito, de reverência. Ciao provém de uma expressão do dialeto veneto sciao, que queria dizer schiavo, escravo, utilizado como saudação no sentido de “sou seu servo, seu escravo”.

Então, ciao e buona notte!

os piores inimigos são os disfarçãdos de amigos
16 abril 2010

Falsos cognatos estão sempre à espreita, são um risco constante na vida de um tradutor. Mas como fazer para descobrir quais termos são possíveis falsos cognatos? Como aprender a desconfiar? Como evitar de cair na armadilha da semelhança acústica e traduzir assim, desavisadamente, um conceito da língua de partida de forma literal?
Um termo incomum, de pouco uso na língua de chegada, com certeza causará estranheza ao tradutor e a pulguinha atrás da orelha, nossa melhor amiga, entrará em ação… Mas o que fazer quando um termo é comum às duas línguas, mas adquire (à nossa revelia) uma conotação específica, um conceito diferente no contexto jurídico da língua de chegada?

Como desconfiar, por exemplo, que a palavra  citazione não corresponde ao conceito de citação? Ou que petizione não é petição inicial? Ou ainda que ricorso não é recurso? A linguagem jurídica está permeada de termos técnicos e seria impossível conhecer a terminologia de cada diferente sistema jurídico, de cada instituto, mas, com certeza, conhecer pelo menos o sistema jurídico da língua de destino ajuda um bocado nestas horas.

Em primeiro lugar, eu procuro e estudo as definições de cada instituto, atentando para o contexto específico, até porque, dentro de um mesmo sistema jurídico, existem inúmeros casos de polissemia, como acontece com o termo petizione, por exemplo, cujo significado é diferente no Direito Italiano, dependendo se estivermos falando de Direito Constitucional ou de Direito Processual Civil. 

É indispensável, então, conhecer o conteúdo que a forma linguística expressa, o conceito por trás do termo, para conseguir enxergar o possível falso cognato. 

Outra hora escrevo mais sobre pesquisa terminológica.

sobre linguagem jurídica
27 março 2010

“A linguagem jurídica acaba afastando a sociedade do Poder Judiciário”, afirma Rodrigo Collaço, presidente da AMB; “Em muitos casos, sem a consulta de um advogado a pessoa lê a sentença e não consegue saber se ganhou ou perdeu.”