Ciascun vocabolo ha nell’intero linguaggio la ragione sufficiente di sé.
Nè il trasmutarsi delle lingue può mai traviare tutte quante le voci dall’origine loro.
E queste variazioni di suono e di senso son cosa importante a conoscere, perché ciascuna variazione di senso oltre a denotare le mutate idee, genera tra i vocaboli sinonimie nuove; e quand’anco uno degli affini cada in disuso, gli altri ritengono dell’antica analogia qualche traccia, quasi sempre rimane alla voce un pò di colore de’ significati per cui venne passando. [Roubaud1]
Há alguns dias estava eu com a minha xicara de café nas mãos, aproveitando aqueles 5 minutos da já famosa técnica do pomodoro (para quem ainda não conhece, aqui vai o link), quando um tweet me avisou que acabara de ser lançado o primeiro podcast brasileiro sobre tradução profissional. É o TradCast, uma parceria da Cláudia Belhassof com a Érika Lessa e o Marcelo Neves. Na hora não deu tempo para ouvir a gravação, pois os minutos já estavam acabando.
Conheci pessoalmente a Cláudia, a Érika e o Marcelo no último congresso da Abrates, e devo confessar que, além de serem competentes, são muito simpáticos (os podcasts não me deixam mentir, podem conferir clicando aqui), então logo guardei o link entre os meus favoritos para poder aproveitar outra hora com calma.
Ontem, finalmente, tirei a tarde para pôr em dia minhas leituras de blogs e afins, e lá estava o TradCast esperando para ser lido, ou melhor, ouvido. Adorei as dicas e como fazia tempo que não postava no meu blog, já aproveitei para seguir um dos conselhos que eles dão: “Exista na Internet“.
Então cá estou eu.
A inspiração para este post surgiu com a palavra “gente” que tão simpaticamente eles usaram no primeiro podcast. Não é minha intenção discutir sobre a questão gramatical do uso de gente no Brasil no lugar de nós, mas sim traçar um paralelo com o uso que se faz na Itália, fazendo algumas considerações sobre o registro do termo ao longo dos tempos.
Quando um italiano fala gente na Itália, não está falando dos italianos, tanto menos está indicando um noi ou um outro grupo determinado que tenha algumas características em comum, como, por exemplo, algum interesse. Quando o italiano fala gente refere-se às pessoas em geral, a uma coletividade indistinta, e é um termo ao qual, na maioria das vezes, dá-se uma conotação negativa, depreciativa. São os outros, a multidão. Por este motivo muitas pessoas, em geral, não usam o termo gente, preferindo persone.
Seguem abaixo alguns apontamentos históricos interessantes para entendermos a evolução no uso desta palavra.
Gente vem de gens, palavra latina que, na antiga Roma, indicava os grupos ligados pelo nome ou pela descendência. Ao lado da família, existia o agrupamento de gens, cujos membros, segundo Cícero, possuíam o mesmo nomen gentilicium, e eram descendentes de algum antepassado comum e longínquo. As gens foram se estabelecendo em territórios distintos e determinados, formando unidades políticas e econômicas. Tínhamos a gens Claudia, a gens Cornelia, a gens Curtia, a gens Valeria, a gens Giulia e por aí vai2.
Em italiano o conceito de gente, com o tempo, foi-se confundindo com o conceito de popolo. O termo genti, assim no plural, designava aqueles agrupamentos de pessoas que tinham características em comum, como costumes, religião, rituais, designando, em geral, a etnia. Falava-se portanto, de genti austriache, genti sarde, genti francesi, no plural.
Quando os territórios adquiriram características únicas e distintivas, nasceram os Estados (e mais tarde, as nações). Começou então a preponderar o uso de expressões il popolo italiano, e posteriormente, la nazione italiana, e não mais le genti d’Italia.
Gente também designava os soldados, escrevendo-se la gente, sem outro determinante, mas com o artigo determinado ou com a especificação genti d’armi. E com a expressão diritto delle genti designava-se o Direito das Gentes, hoje denominado de Direito Internacional Público.
Ainda o termo gente com os pronomes possessivos designava os parentes: la gente mia ou la gente dei miei paesi.
Aquela acepção de grupo, de coletividade residente em um determinado território foi perdida ao longo do tempo. La gente di Roma ou la gente di Napoli já são coisas do passado, tão limitado que é o uso atual. Dificilmente alguém fala hoje la gente di Cosenza è simpatica.
O uso do plural genti, designando as grandes coletividades, como por exemplo, le genti celtiche, le genti indoeuropee, le genti orientali ou le genti di Francia, com acepção de povo ou etnia, é usado hoje somente em conversas mais formais. É mais corriqueiro ouvir il popolo celta, i popoli indoeuropei, i popoli orientali.
Uma última análise. Como já escrevi, atualmente, em italiano, gente é usado para designar le persone in generale, uma multidão não específica. É um nome coletivo, indeterminado. Designa um número indeterminado de pessoas. Por este motivo, usa-se sem o artigo definido, assim:
A teatro c’era molta gente
C’è gente per strada
C’era poca gente alla festa
La stanza era piena di gente
Aspetta! C’è gente che è arrivata prima.
Ou como canta Sergio Endrigo: C’è gente che ama mille cose…
Quando for usado no singular, com o artigo determinado, mas sem nenhum outro elemento que caracterize o grupo, entende-se como os outros, muitas vezes com tom depreciativo, um certo caráter de desprezo, designando o povo, visto como uma coletividade sem individualização. Como por exemplo nas frases abaixo:
Attento, la gente parla.
Cammino in mezzo alla gente.
Para determinar o grupo precisamos acrescentar algo que não seja apenas o artigo determinado, alguma qualificação que o defina, algo comola gente che corre, la gente che assiste a una partita di pallone. Precisamos colocar um determinante:
Gente ricca, gente povera;
Gente di campagna, gente di città;
Gente di cinema, gente di teatro
Non sopporto quella gente.
Em quanto no Brasil “a gente somos nós“, na Itália la gentesão os outros.
Bom, muito obrigada por visitar a página e não se esqueçam de comentar!
A gente se vê por aqui (não resisti)
😉
P.S. Eu sei que o post ficou muito comprido e agradeço a quem teve a paciência de chegar até o final.
1 Roubaud, in “La definizione lessicografica. Tradizione e procedure compositive nei dizionari monolingui, alfabetici, italiani dalla seconda metà dell’Ottocento ad oggi. Dott. Eleonora Stenta
1b Curiosidade: é importante ressaltar que a conjunção “né” originalmente era pronunciada aberta (/ nɛ/), isso até mais ou menos 1700, pois deriva de “nĕc”. Por este motivo, em textos antigos aparece escrito com o acento grave, para indicar a pronúncia exata da época. http://www.dizionario.rai.it/poplemma.aspx?lid=34563&r=13630
2 Curiosidade: as pessoas livres da antiga Roma adotavam o sistema dito tria nomina para os nomes. Por exemplo, o nome completo, em latim, de Júlio Cesar era Gaius Iulius Caesar. O primeiro, Gaius, era o praenomen, que caracterizava cada individuo (o atual nome de batismo), o segundo designava o nomen gentilicium, e esclarecia que ele pertencia à gensIulia, e o terceiro era o cognomen, Caesar, correspondente ao nome do ramo da família (o atual sobrenome).